13/05/2008

O Tísico

Rua acima morava um tísico. Nunca aparecia para os passeantes, na verdade só sua tosse gutural e incansável se mostrava, a janela do catre que habitava nunca fora aberta e isto é um fato. Um cheiro forte de cânfora era exalado todo final de tarde, não sei se por causa do sereno da boca da noite ou pelo doído fardo de ter tossido muito. Dias abafados estes em que o tísico sofria. Seu Dimas, dono da quitanda das contravenções divertidas, sabia a vida de todos, contava já perto de seus oitenta anos, e disse-me certa vez que o tal tísico fora o melhor jogador das redondezas e dono de uma canhota magistral como nunca se vira, chegou-se a cogitar que jogaria em grandes clubes e que sua habilidade canhoteira era de fazer qualquer um ficar embevecido, inclusive os jogadores adversários driblados por ele... mas nos dizeres de Seu Dimas um amor mal curado levou o infeliz diabo a contrair uma espécie de “tuberculose de amor”, segredara sussurrando que já se passavam mais de trinta anos sem sair de casa. Havia se enclausurado por uma tal de Marieta. Sempre quando vinha da boêmia me compungia com aqueles urros medonhos emitidos pelo tísico, dormia mal por causa da dor alheia e passei a evitar a passagem na frente de sua casa, mas mesmo assim, devido aos porres homéricos, esquecia-me às vezes e lá se ia mais uma noite agitada com as tossidas a reverberarem no meu íntimo. O pior do convívio com esse barulho dolorido... era saber que um homem quase morto é quem o fazia... Certa tarde de abril, quando arriscava um futebol com os molecotes da rua, avistei longe uma ambulância vindo lenta, sem pressa e até com uma certa morosidade proposital para que os espectadores juntassem-se à frente de onde ela estacionaria. Foi na casa do tísico. Levei um drible por baixo das pernas e automaticamente uma vaia da pivetada. Parei, estagnei e vi o socorrista negro descer pesadamente do carro nosocomial. Cheguei-me para perto e tratei de expulsar a meninada dali, gritando e mandando-os para suas casas. Menino atrapalha tudo. Vi o cadáver vindo em cima duma maca desgastada. Esquálido e amarelo o corpo do tísico. Seu cabelo escorria pregado pelo pescoço por seu suor. O estado consumptivo da doença rendera-lhe uma aparência esquelética, desnutrida e lembrou-me o Cristo pintado por Rafael de Sanzio. A boca entreaberta não acusava nenhum resto de dente sequer. Sofria vendo-o. Parei o negrão que o levava e indaguei quem havia ligado para avisar do seu falecimento e de prontidão dissera-me disfarçando o riso por entre seu enormes dentes brancos:

- O vizinho telefonou dizendo que depois de muitos anos não ouvira o Sr. Jorge tossindo.

Jorge era seu nome. Perecera por um amor. Agora mais que nunca queria ter visto sua habilidade de canhoteiro num campo de futebol, mesmo sendo eu a vítima de seu drible desconcertante. Tarde para esse tipo de sentimento.

3 comentários:

L. Modesto disse...

Muito bom, Régis...
mais uma vez, se superou.

Anônimo disse...

Gostei do desfecho da história...

Anônimo disse...

Reli várias vezes o texto e pensei: quem nunca foi driblado intencionalmente para ver o que desejava, mesmo que isso lhe rendesse algum desconcerto?